Estas
indicações bibliográficas vão ao arrepio do que se tornou uso nas
universidades, porque cito clássicos e autores defuntos. Ora, a partir do
momento em que o número de citações passou a fazer parte do curriculum,
os orientadores praticamente impedem os alunos de mencionar mortos, porque
seria o mesmo que enterrar dinheiro em cemitérios. Mas, dado que eu conduzo as
pesquisas como acho correcto e não para alimentar os curricula, cito os
autores e indico as pistas que me parecem melhores para ter uma ideia do
assunto.
Para
estudar os gestores deve obrigatoriamente começar-se por Makhaisky. Foi ele o
primeiro a conceber de maneira sistemática os gestores como classe social
específica. Existe uma tradução em português das passagens mais elucidativas da
obra de Makhaisky nas págs. 84-170 de Maurício Tragtenberg (org.) Marxismo
Heterodoxo, São Paulo: Brasiliense, 1981. Existe uma biografia de
Makhaisky: Marshall S. Shatz, Jan Wacław Machajski. A Radical Critic of the
Russian Intelligentsia and Socialism, Pittsburgh: University of Pittsburgh
Press, 1989. Este livro não é nada de extraordinário, mas não há outra
biografia, pelo menos que eu conheça.
Os
prolegómenos do estudo dos gestores é em Saint-Simon que se encontram. A mesma
função que Smith e Ricardo cumprem para a teoria económica cumpre Saint-Simon
para a teoria da classe dos gestores. Existe uma edição da obra completa de
Saint-Simon, mas é um tanto atabalhoada e sem um bom aparelho de notas: Oeuvres
de Claude-Henri de Saint-Simon, 6 vols., Paris: Anthropos, 1966. Quando
estudei Saint-Simon esta edição era a única existente; não sei se entretanto se
teria feito melhor. Escrevi uma pequena síntese de algumas das noções de
Saint-Simon nas págs. 17-39 de João Bernardo, Democracia Totalitária. Teoria
e Prática da Empresa Soberana, São Paulo: Cortez, 2004. O livro encontra-se
na internet, não sei por que artes, e não me dei ao trabalho de verificar se se
trata de uma versão correcta, mas por que não se trataria?
Para
estudar a evolução dos gestores como classe, no seu campo de acção, o melhor é
estudar a evolução das teorias de administração de empresa. Não faltam livros
neste âmbito, aconselho um que tenha as seguintes características:
anglo-saxónico, volumoso, com abundantes notas de rodapé e bibliografia.
Estudar Alfred Sloan Jr, Elton Mayo e depois os teóricos mais recentes do
toyotismo e da qualidade total é estudar os grandes inovadores e
conceptualizadores da gestão.
Na esquerda
ou, mais exactamente, na extrema-esquerda, a noção da existência dos gestores
enquanto classe social específica e dominante foi gerada na crítica à evolução
da União Soviética e ao stalinismo. Como a burguesia havia sido aniquilada
fisicamente ou eliminada economicamente e a propriedade dos meios de produção cabia
ao Estado, mas como, apesar disto, as relações sociais de trabalho continuavam
inalteradas, os críticos de extrema-esquerda argumentavam que existia uma outra
classe capitalista, que aproveitara em seu benefício a revolução bolchevista.
Para uns, essa outra classe seria pós-capitalista, o que definiria o regime
soviético como nem capitalista nem comunista; enquanto, para outros, essa
classe seria capitalista, o que definiria o regime soviético como um
capitalismo de Estado. Existe uma excelente resenha bibliográfica destas
polémicas: Henri E. Morel, «As Discussões sobre a Natureza dos Países de Leste
(até à Segunda Guerra Mundial): Nota Bibliográfica», em Artur J. Castro Neves
(org.) A Natureza da URSS, Porto: Afrontamento, 1977.
Na verdade,
a questão vinha já dos primeiros anos do regime bolchevista e encontram-se
muitas indicações e pistas de pesquisa no segundo volume da conhecida trilogia
de Edward Hallett Carr, A History of Soviet Russia. The Bolshevik
Revolution, 1917-1923, 3 vols., 1952. O livro existe na Penguin.
Para uma
perspectiva genérica do período da NEP, do começo do stalinismo e da génese
destas polémicas, é indispensável Anton Ciliga, Au Pays du Mensonge
Déconcertant. Dix Ans derrière le Rideau de Fer, Paris: Gallimard e Union
Générale d’Éditions (10/18), 1977 [1ª ed.: Au Pays du Grand Mensonge,
Paris, 1938. 2ª ed., tiragem restrita: 1950].
Para
analisar estas posições com mais detalhe convém ler um dos expoentes da
concepção dos gestores como classe pós-capitalista: Bruno Rizzi, L’U.R.S.S.:
Collectivisme Bureaucratique (La Propriété de Classe), Paris: Champ Libre,
1976 [1ª ed.: La Bureaucratisation du Monde, 1ª Parte, Paris, 1939].
Note-se que esta reedição da obra se limita a um dos volumes, ocultando a
adesão de Rizzi ao fascismo, que é o tema do outro volume: Bruno R[izzi]., Quo
Vadis, América? (Est-ce un “New Deal”?), Paris: ed. do autor, 1939. Mas
esta edição é muito difícil de encontrar.
Muitíssimo
mais interessante do que Rizzi, na minha opinião, é Lucien Laurat, por exemplo:
Lucien Laurat, L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme,
Paris: Valois, 1931; Lucien Laurat, Économie Dirigée et Socialisation,
Paris e Bruxelas: L’Églantine, 1934. Eu escrevi acerca de Laurat uma série de
quatro artigos de divulgação num site: João Bernardo, «Lucien Laurat no
País dos Espelhos»,
Note-se que
Trostsky defendeu até ao fim o carácter economicamente socialista da União
Soviética, com o argumento de que a estatização da propriedade dos meios de
produção seria suficiente para definir o socialismo. Assim, para Trotsky a
burocracia stalinista era uma camada social parasitária, mas não uma classe
social específica. No seu exílio Trotsky conduziu permanentemente uma dupla
polémica, à direita contra o stalinismo, e à esquerda contra aqueles que
consideravam que a classe dominante soviética eram os gestores. Assim, encontram-se
muitas pistas de análise interessantes nas obras de Trotsky desse período, mais
nos artigos do que nos livros. Existe uma edição dos artigos de Trotsky
escritos entre 1933 e 1940, organizada por George Breitman e Evelyn Reed e
depois por George Breitman e Bev Scott, publicada em Nova Iorque pela Merit e
depois pela Pathfinder de 1969 a 1972.
Uma das
figuras que rompeu à esquerda com o trotskismo, defendendo a existência dos
gestores como classe social específica e o seu papel como classe dominante no
regime soviético foi James Burnham. Nesta perspectiva, a sua obra mais
importante é The Managerial Revolution, publicada em 1941. Na minha
opinião, o lugar de destaque geralmente atribuído a Burnham é injustificado e
injusto, pois este autor nada acrescentou ao que a extrema-esquerda, quero
dizer, aqueles situados à esquerda de Trotsky, já havia defendido. Mas Burnham
era um universitário e adoptou posições de direita durante a guerra fria, o que
o tornou popular em muitos meios e assegurou a divulgação dos seus livros.
E passo
para outra vertente da teoria da classe dos gestores. Uma das principais
figuras nesta vertente foi Walther Rathenau. Há muitos estudos sobre ele.
Rathenau faz lembrar Keynes, porque foi um administrador de empresa, um
ensaísta, um político e um amante da arte, e também por ter sido uma das
inteligências mais brilhantes da época. Musil, em O Homem Sem Qualidades,
inspirou-se em Rathenau para uma das figuras. Rathenau esteve à frente das
tentativas de organização da economia e de planificação central prosseguidas
pelo estado-maior alemão durante a primeira guerra mundial. Ora, estas
tentativas influenciaram poderosamente as noções de Lenin acerca da organização
económica, como se pode ver em muitas das suas obras de 1917 em diante. Assim,
o estudo das concepções de Rathenau ajuda também a compreender a situação
soviética.
Além da
figura de Rathenau, a vertente tecnocrática na república de Weimar é
importante. Encontram-se muitos fios de pesquisa numa excelente antologia:
Anton Kaes, Martin Jay e Edward Dimenberg (orgs.) The Weimar Republic
Sourcebook, Berkeley, Los Angeles e Londres: University of California
Press, 1995. É indispensável estudar as obras de Siegfried Kracauer sobre a
tecnocracia e a burocracia.
Depois,
durante o Terceiro Reich, a vertente tecnocrática foi especialmente notória nas
figuras do engenheiro Fritz Todt e do arquitecto Albert Speer, ambos muito
importantes na hierarquia nazi. É fundamental a leitura das memórias de Speer,
traduzidas em várias línguas.
Um dos
aspectos mais interessantes, e pouco estudados, é a aliança estabelecida entre
Speer e Jean Bichelonne. Bichelonne era um jovem geniozinho e o mais notável de
uma constelação de tecnocratas que se puseram ao serviço do regime fascista de
Vichy. Acerca desta tecnocracia durante o regime de Vichy teceram-se as
histórias mais delirantes. Dois exemplos: Henry Coston (org.) Les
Technocrates et la Synarchie, Paris: Lectures Françaises, 1962; Olivier
Dard, La Synarchie ou le Mythe du Complot Permanent, Paris: Perrin,
1998. Num plano de grande seriedade, encontram-se muitas pontas de pesquisa
naquela que é, para mim, a melhor obra sobre o regime de Vichy: Robert O.
Paxton, La France de Vichy, 1940-1944, Paris: Seuil, 1973 (a edição
original é norte-americana: Vichy France. Old Guard and New Order, 1940-1944,
1972). A partir desta obra pode verificar-se um elo de continuidade entre a
tecnocracia que em Vichy adoptou o fascismo e a tecnocracia que, juntando-se a
De Gaulle, adoptou a democracia. Jean Bichelonne numa ponta e, na outra ponta,
Jean Monnet, ambos em nome de um europeísmo tecnocrático. Para compreender
estas articulações ideológicas é interessante ler Henri Michel, Les Courants
de Pensée de la Résistance, Paris: Presses Universitaires de France, 1962.
Vemos aí como as concepções tecnocráticas vigentes em Vichy influenciaram
alguns dos meios mais importantes da Resistência. Um dos grandes elos de
ligação foi o economista François Perroux, que exerceu uma grande influência
sobre a tecnocracia francesa fascista ou fascizante antes de 1944 como, depois,
sobre a tecnocracia do Mercado Comum, assim como sobre a tecnocracia das
independências africanas, graças aos seus estudos sobre o desenvolvimento
económico.
No fascismo
italiano, uma das figuras mais importantes da ala tecnocrática foi Giuseppe
Bottai. Vale a pena pesquisar o que ele escreveu, nomeadamente as memórias:
Giuseppe Bottai, Vent’Anni e un Giorno, [s. l.]: Garzanti, 1949. Sobre a
tecnocracia como elemento de relação entre o fascismo italiano e o New Deal
norte-americano é interessante ler: Giuseppe Bottai, «Corporate State and N. R.
A.», Foreign Affairs, 1934-1935, XIII, nº 4.
Aliás, o
estudo do New Deal é importante para mostrar que a vertente fascista da
tecnocracia e a sua vertente democrática puderam estar amalgamadas.
Distinguimo-las porque a história as distinguiu noutros países, mas, se nos
limitássemos aos Estados Unidos, só teríamos razão para as juntar numa
realidade única. Sobre o New Deal há um monumento da historiografia, a trilogia
que Arthur M. Sclesinger Jr dedicou à época de Roosevelt, mas que cobre o
período de 1919 até 1936. Encontram-se aí vários elementos de pesquisa muito
sólidos sobre o pensamento tecnocrático. Acerca do assunto, um dos autores
básicos nos Estados Unidos é Adolf A. Berle Jr, nomeadamente Power without
Property. A New Development in American Political Economy, Nova Iorque:
Harcourt, Brace & World, 1959; e é um clássico a obra que ele escreveu
juntamente com Gardiner. Means, The Modern Corporation and Private Property,
Transaction, 1932.
Em Espanha,
tanto durante a Segunda República como durante o fascismo, foi em torno de
Ortega y Gasset que se reuniu a tecnocracia modernizadora, que veio a fornecer
o principal eixo de evolução do franquismo.
Em
Portugal, na minha opinião, deve atribuir-se um papel central a Adérito Sedas
Nunes e à Análise Social. Foi essa a grande escola de pensamento e de
acção da tecnocracia portuguesa. Mas não caíram do céu e tiveram precursores ao
longo do fascismo, nomeadamente o engenheiro Araújo Correia. Em geral, foi em
algumas secções da Câmara Corporativa e em torno dos Planos de Fomento que se
formou a base da tecnocracia poprtuguesa, hoje dominante. Aliás, é curioso que
Franco Nogueira considerou, e a meu ver com razão, os governos de Salazar como
precursores dos governos tecnocráticos. Escreveu ele: «Salazar abre assim em
Portugal a era da tecnocracia» (Franco Nogueira, Salazar, vol.
III, Coimbra: Atlântida, pág. 290, sub. orig.).
No Brasil é
interessante verificar que os gestores têm garantido a continuidade económica
num país onde a vida política foi atribulada. Se obervarmos as presidências de
Getúlio Vargas, depois a de Juscelino Kubitschek, depois o regime militar,
depois as duas presidências de Fernando Henrique Cardoso e, por fim, as três
presidências do PT, constatamos a solidez de uma camada gestorial subjacente,
que tem fornecido à economia um eixo de continuidade e um movimento ascencional
quase ininterrupto. Quando eu cheguei ao Brasil os principais teóricos da
tecnoburocracia — uma nomenclatura que corresponde exactamente ao que eu
denomino gestores — eram Bresser Pereira e Fernando Prestes Motta. O Fernando
morreu prematuramente e o Bresser Pereira, uma das grandes inteligências
brasileiras, deixou de estar politicamente interessado em prosseguir esse rumo
de analise. Ele foi um dos ministros mais importantes de Fernando Henrique
Cardoso e agora rompeu com o PSDB para se aproximar a passos mansos do PT e do
desenvolvimentismo industrialista. Mas vale a pena ler o que ele escreveu
acerca do assunto durante o regime militar: Luiz Carlos Bresser Pereira, A
Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia, São Paulo: Brasiliense, 1981. Há um
estudo interessante: Maria de Lourdes Manzini Covre, A Fala dos Homens.
Análise do Pensamento Tecnocrático, 1964-1981, São Paulo: Brasiliense,
1983. Há pouco tempo enviaram-me uma tese já antiga, que ainda não li, mas que
pode ser interessante: Roberto Grün, A Revolução dos Gerentes Brasileiros,
Campinas: Unicamp, 1990. Enviarei em anexo.
Finalmente,
existe um livro meu que é de certo modo um remake do Para uma Teoria
do Modo de Produção Comunista, embora acho que quem se apercebe de que é um
remake sou eu e não os leitores: João Bernardo, Economia dos
Conflitos Sociais, São Paulo: Cortez, 1991 e São Paulo: Expressão Popular,
2009. A primeira edição na Cortez esgotou-se, essa editora não se mostrou
interessada em o reeditar e a segunda edição esgotou-se igualmente, mas
entretanto eu tomei várias posições públicas críticas ao MST e a Expressão
Popular, que é próxima a esse Movimento, também não se interessou por fazer
nova edição. Como o livro é de fácil acesso em bibliotecas e alfarrabistas e
como estou farto de editoras, decidi disponibilizar os pdfs e coloquei-os na
internet. Para maior facilidade, envio em anexo. A questão dos gestores é
tratada sobretudo nas págs. 170-234 da versão em pdf.
Com estas
pistas e com as indicações bibliográficas que se podem encontrar nas notas de
rodapé relativas às passagens consideradas mais interessantes, creio que há material
suficiente para encetar uma pesquisa.
Publicado em 2019
Era um mundo / João Bernardo Vosstanie Editions
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