OS ANOS FUNDADORES
Editora cujas origens remontam a 1963, com o lançamento da coleção deantologias “Afrontamento”, publicada no Porto por um grupo composto de“jovens católicos progressistas, que tinham uma perspetiva mais atuante da religião no campo social, e gente de esquerda não conotada com o Partido Comunista” (*). Os livros eram coordenados e editados por Pedro da Conceição Francisco, jovem provindo da Guiné- Bissau em maio de 1966 e desde há muito ligado à JUC [Juventude Universitária Católica] do Porto. Este grupo editou ao ritmo de um livro por ano até 1968, com uma estruturaamadora e semiartesanal. Os títulos publicados nesta série foram: "Ao encontro da pessoa", de Emmanuel Mounier e Jean Lacroix (1963); "O homem invisível", de Pablo Neruda (1964); "Do Integrismo ao Nacional Catolicismo: os católicos e as direitas", de Louis Davallon, P. A. Liège, M Garrigou Lagrange, Louis Guinchard e Yves Congar (1965); "O Plano Langevin-Wallon para a reforma do ensino" (1966); e "Iniciação à teoria económica", de Ernest Mandel (1968). Os livros desta coleção traziam na contracapa a seguinte frase, de Emmanuel Mounier, que resumia o espírito que motivava os seus editores: “Quando a desordem se torna ordem, uma atitude se impõe: afrontamento”.
Em 1967 o grupo em torno da Afrontamento amplia-se e busca dar início a uma nova fase de publicações. Nesse momento, alguns dos membros do grupo são Pedro Francisco, Mário Brochado Coelho, Raúl Moura, Pedro Barros Moura, José Leal Loureiro, Eneias Comiche, Machado Cruz, Artur Castro Neves, Arnaldo Fleming, José Carlos Marques, Eugénio Furtado, Gaspar Barbosa, Bento Domingues, David Miranda, César Oliveira e José Soares Martins (que utilizava o pseudónimo de José Capela). Várias dessas pessoas atuavam na cooperativa cultural Confronto, criada no Porto em 1966. Desse esforço surge a coleção Textos Afrontamento, também coordenada por Pedro Francisco, cujos dois primeiro títulos são: "Mas socialismo porquê?", de Albert Einstein (1968); e "Vietnam: a oposição à guerra nos EUA. Programa da Frente Nacional de Libertação do Vietname do Sul" (1969).
Até este momento, a estrutura editorial e comercial existente em torno da Afrontamento era amadora, militante, o que criava algumas limitações para a produção e circulação dos livros editados. É em 1971 que se inicia efetivamente a segunda etapa da atuação do grupo, com o incremento das edições e a sua ampliação. É a partir de então que de facto se pode falar numa Editora Afrontamento, com coleções diversificadas de livros, constância nos lançamentos e uma melhor estrutura comercial, mais profissional. José Sousa Ribeiro, que era nessa época um jovem estudante de economia na Faculdade do Porto, aproximou-se do grupo por afinidade, acabando por ser, pouco depois, profissionalizado pela então embrionária editora, ocupando-se da produção dos livros e da sua venda para as livrarias.
A nova fase da editora começa com a iniciativa do advogado Mário Brochado Coelho, um dos membros do grupo Afrontamento, de editar um livro sobre o processo judicial contra Joaquim Pinto de Andrade, militante da luta anticolonial que estava preso em Angola. Aproveitando o facto do processo jurídico ser público, Brochado Coelho decidiu publicar as peças desse processo em livro, dando origem à obra "Em defesa de Joaquim Pinto de Andrade", em julho de 1971. “No blackout de informações que havia na época, essa era uma forma de furar esse bloqueio. Este livro teve uma grande difusão e saiu com a chancela Afrontamento” (*). O sucesso de vendas desse livro – que teve uma tiragem de 20 mil exemplares – e o entusiasmo que ele gerou, levaram a que se começasse a estruturar melhor essas atividades e que se evoluísse para um empreendimento mais organizado. Os recursos obtidos com o livro foram cedidos por Brochado Coelho e serviram de base para o incremento das edições, que passaram a um ritmo acelerado. Apenas em 1971 foram pelo menos seis títulos, editados entre julho e dezembro. Em 1972 e 1973 foram cerca de dez títulos por ano. Eis alguns títulos publicados nestes anos: "Encontro. Alguns aspectos da religião tradicional discutidos pelo povo de Macieira da Lixa", coordenado por Mário Pais de Oliveira (1971); "O socialismo crítico de hoje: Teses de “Il Manifesto” " (1971);"Ocupação do Bairro do Bom Sucesso em Odivelas por 48 famílias de barracas", coordenado por José João Louro (1972); "Presos políticos: documentos 1970-1971", editado pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e por Armando de Castro, Francisco Pereira de Moura e Lindley Cintra (1972); "A dominação inglesa em Portugal", de Armando de Castro (1972); "Pedagogia do oprimido", de Paulo Freire (1972); "As greves selvagens na Europa ocidental" (1973); "Luta de classes e instituições burguesas: o debate sobre as eleições legislativas em Itália 1972", do grupo“Il Manifesto” (1973). Foram lançados também sete volumes da coleçãoMovimento Operário Português, entre os quais: "O congresso sindicalista de 1911", organizado por César Oliveira (1971); "O movimento operário em Portugal", de Campos Lima (1972); "O sindicalismo em Portugal", de Manuel Joaquim de Sousa. (1972); "O socialismo em Portugal, 1850-1900", de César Oliveira (1973). A coleção As Armas e os Varões lançou dois títulos:"Moçambique pelo seu povo", organizado por José Capela (1971); e "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África", também de José Capela (1973).
A editora aproveitou-se do facto que, enquanto a imprensa periódica estava sujeita à censura prévia, os livros estavam sujeitos a uma censura a posteriori. Portanto, podia-se publicar fosse o que fosse, embora o destino de muitas das coisas que se publicavam fosse a apreensão pela polícia política. Os títulos publicados nesses anos têm marcadamente um carácter de oposição ao governo de Marcelo Caetano, com forte ênfase em temas relacionados com a luta anticolonial. Merece destaque a coleção Bezerro D’Ouro, cuja característica era reproduzir nos seus volumes peças jurídicas de processos contra oposicionistas: pedidos de habeas corpus, medidas de segurança, reprodução da legislação em vigor, autos de interrogatório, acórdãos de tribunais, etc. Tratava-se, portanto, de documentos oficiais, o que tornava embaraçoso para o governo a sua censura. Foi, sem dúvida, um subterfúgio inteligente, apesar de boa parte desses livros ter sido posta“fora de mercado”, ou seja, foram censurados ou apreendidos da mesma forma. Todavia, a censura ou a apreensão não significavam, na maior parte dos casos, que os livros efetivamente deixavam de circular, como veremos adiante. Os livros da coleção Bezerro D’Ouro foram um êxito, venderam milhares de exemplares. Isso colocou a necessidade de uma organização mais profissional para a editora. “Mas no fundo era eu [José Sousa Ribeiro] e mais dois ou três colaboradores que tratávamos tudo” (*).
O sucesso dessa e de outras coleções da Afrontamento, tornou a editora rapidamente conhecida em todo o país. Nessa segunda etapa, alguns dos católicos progressistas “foram-se afastando do catolicismo, passando a engrossar as fileiras de uma esquerda não filiada nas organizações políticas clandestinas que existiam. Era um grupo muito marcado pelas questões anticoloniais” (*). De facto, nessa etapa, esse foi o ponto forte do combate político da editora: “Aquilo que afrontava mesmo ao regime de maneira radical eram as questões coloniais. E fomos radicais nisso”.
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