Jornal COMBATE - 2 publicações Vosstanie Editions

Jornal COMBATE - 2 publicações Vosstanie Editions
Jornal COMBATE - Vosstanie Editions

sexta-feira, 8 de março de 2019

Um percurso: a classe dos gestores / João Bernardo

Um percurso:
a classe dos gestores

No início de 1963 foi publicado o primeiro número da revista Análise Social, que renovou a sociologia em Portugal. O seu fundador, inspirador e director durante muitos anos foi Adérito Sedas Nunes, que, no plano intelectual, teve um papel muito importante na transição do fascismo para a democracia capitalista. Analisei este papel no Labirintos do Fascismo, 3ª versão. Pode procurar usando controle f ou o índice de personagens no final do livro.


Comecei a minha actividade política contra o fascismo no início do ano lectivo de 1961-1962, com quinze anos de idade. Eu militava tanto no movimento estudantil como na acção clandestina, na periferia do Partido Comunista. No início do ano lectivo de 1963-1964 passei para a universidade e entrei então para o Partido Comunista, mas já como militante. A Análise Social aparecia-nos, a mim e a outros colegas, como um sopro renovador no ambiente esclerosado da academia portuguesa no salazarismo, e foi aí que pela primeira vez deparei com a noção de uma tecnocracia modernizadora com interesses sociais próprios. A raiz do que mais tarde eu definiria como classe dos gestores, foi aí que a encontrei.


No final do ano lectivo de 1964-1965 fui expulso de todas as universidades portuguesas por um período de oito anos, a mais longa expulsão decretada pelo fascismo português durante os seus quarenta e oito anos de existência. Em 1965-1966 fui preso três vezes, e pouco depois da minha última prisão decidi abandonar o Partido Comunista. Em 1964 ocorrera uma cisão maoísta, que levara à fundação conjunta do Comité Marxista-Leninista Português (CMLP) e da Frente de Acção Popular (FAP). Estas duas organizações foram completamente destruídas pela Pide, a polícia política, no final de 1965. Quando saí do Partido Comunista, em 1966, encetei, junto com alguns camaradas, a reconstrução, a partir do zero, de uma organização maoísta. Em Novembro de 1967 a Pide destruiu praticamente tudo o que tínhamos criado, mas eu consegui, junto com outros dois camaradas, passar à clandestinidade antes de sermos presos. Na clandestinidade, um desses camaradas permaneceu inactivo e o outro foi preso pouco depois, ainda em Novembro de 1967 ou no começo de Dezembro. Fiquei sozinho a reconstruir o que me era possível. Durante esse período de clandestinidade escrevi um texto bastante longo intitulado Portugal 1968: Um Ponto Morto?, onde me lembro que usei a noção de uma tecnocracia com interesses sociais próprios, que apreendera na leitura da Análise Social. Esse texto foi então policopiado e distribuído clandestinamente. Eu não tenho nenhum exemplar, e Miguel Cardina, o historiador que melhor estudou a extrema-esquerda portuguesa durante esse período ( https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/15488/1/Tese%20doutoramento_Miguel%20Cardina.pdf ), diz que não conseguiu encontrar nenhum exemplar. Se ele não o conseguiu, ninguém mais conseguirá. Aliás, para conhecer a minha actuação política antes do 25 de Abril de 1974 pode ler o que o Cardina escreveu a meu respeito nessa obra.


Em Junho de 1968, terminado o trabalho de reconstrução da organização maoísta, a que me era possível proceder naquelas condições, passei clandestinamente a fronteira e fui para Paris, onde vivi também clandestinamente, ou seja, com documentos de identificação falsos, até Abril de 1974. Em Outubro de 1969 rompi com a organização maoísta central, o CMLP ( https://archive.org/details/jb-cdt ). Mais exactamente, eu ia ser expulso e antecipei-me um dia, só para dizer que tinha sido eu a sair.


Na sequência da minha saída do CMLP fundei, junto com outros camaradas, que na altura estavam todos em Portugal, os Comités Comunistas Revolucionários (CCR) ( https://pt.wikipedia.org/wiki/Comit%C3%A9s_Comunistas_Revolucion%C3%A1rios_Marxistas-Leninistas ). Escrevi então um longo artigo, À Esquerda de Cunhal Todos os Gatos São Pardos, publicado em números sucessivos da revista teórica dos CCR, intitulada Viva o Comunismo! ( https://archive.org/search.php?query=Jo%C3%A3o%20Bernardo ). Álvaro Cunhal era o secretário-geral do Partido Comunista e o artigo fazia uma crítica às concepções do Partido Comunista e às concepções de uma variedade de organizações e grupos que, entretanto, haviam surgido na área do maoísmo e do marxismo-leninismo. Não reli esse artigo, e aliás devo dizer-lhe que nunca releio os meus textos, como medida profiláctica para não pôr travões à imaginação e manter a criatividade. Mas lembro-me de que um dos eixos centrais da análise consistia na distinção entre uma pequena-burguesia de raiz pré-capitalista, formada por artesãos, pequenos comerciantes e gente desse género, e outro tipo de pequena-burguesia, que se desenvolvia e crescia com o crescimento do capitalismo, formada por profissões como os engenheiros e outros tecnocratas. Nesta série de artigos eu dava um maior desenvolvimento àquilo que esboçara no Portugal 1968: Um Ponto Morto? e que apreendera na leitura da Análise Social.


Entretanto, cabe explicar o seguinte. Após a minha ruptura com o CMLP, a imprensa do CMLP passou a acusar-me sistematicamente de trotskismo. É claro que esta era uma acusação habitual nos meios stalinistas, mas foi tão sistemática que eu pensei: será que sou mesmo trotskista? Em Portugal não havia então nenhuma organização trotskista, e aliás nunca houvera, mas se eu fosse trotskista escusava de perder o meu tempo no meio maoísta. Até essa altura eu lera três ou quatro livros de Trotsky, e decidi então ler tudo o que me fosse possível, o que em Paris não era difícil. Li os livros dele. E nessa época os trotskistas americanos haviam recolhido e editado em vários volumes os artigos que o Trotsky escrevera depois de ter saído da União Soviética. Comprei estes volumes e estudei aquilo tudo atentamente, com três resultados. O primeiro, foi que cheguei à conclusão de que eu não era trotskista. O segundo resultado, é que passei a ter um conhecimento detalhado da obra de Trotsky, que me tem servido até hoje.


Mas houve ainda um terceiro resultado, que interessa aqui especialmente. Depois de ter abandonado a União Soviética, além dos seus ataques a Stalin e ao stalinismo, Trotsky passou a conduzir sistematicamente uma luta política dupla, que é muito mais visível nos artigos do que nos livros. Por um lado, ele atacava aqueles a quem acusava de «centrismo», ou seja, que acusava de oscilarem entre o stalinismo e as posições dele, Trotsky, e pouco mais tarde da IV Internacional, a partir do momento em que foi fundada. Estes «centristas» reuniam-se em torno do Bureau Londres-Amesterdão e incluíam os socialistas noruegueses; o POUM espanhol, com Joaquìn Maurìn e Andrès Nin; o grupo de Saint-Denis, com Doriot, antes de se terem convertido no principal partido fascista francês; os holandeses de Henk Sneevliet; Victor Serge e outros. Ao mesmo tempo, Trotsky conduzia uma luta contra todos aqueles que classificavam o regime soviético, não como um socialismo degenerado, mas como um verdadeiro sistema de exploração de classe, e que consideravam a burocracia soviética, não como uma casta privilegiada, mas como uma verdadeira classe exploradora. Em termos muito gerais, estes militantes à esquerda de Trotsky dividiam-se em duas grandes correntes. Uns consideravam o regime soviético como um capitalismo de Estado e consideravam a burocracia ou como uma burguesia de Estado ou como uma classe capitalista não burguesa. Outros consideravam o regime soviético como um sistema económico pós-capitalista e a burocracia como o protótipo de uma classe dominante pós-capitalista. Tratei em parte esta questão no Labirintos do Fascismo, 3ª versão, nas págs. 467 e segs.


Assim, a leitura das polémicas de Trotsky abriu-me os olhos para toda uma gama de autores que, na extrema-esquerda, consideravam a existência de uma classe exploradora que não era a burguesia tradicional. Quero aqui chamar a atenção para o facto de eu ter conhecido esses autores não pelas obras deles, que em boa parte eram dificílimas de encontrar, e ainda hoje o são, mas pelas acusações de Trotsky. Esta foi uma contribuição decisiva para eu desenvolver as noções que começara a esboçar no Portugal 1968: Um Ponto Morto? e no À Esquerda de Cunhal Todos os Gatos São Pardos.


Entretanto, a Revolução Cultural chinesa perdera o carácter de base e a espontaneidade que a caracterizara inicialmente e fora completamente militarizada, uma evolução que nos deixava, nos CCR, cada vez mais perplexos. A visita de Nixon à China, em Fevereiro de 1972, foi a proverbial gota de água que fez transbordar o copo. Eu redigi então um documento interno que fiz circular nos CCR, a cuja direcção pertencia, e que usei mais tarde como capítulo 25 do Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista, págs. 231 e segs. ( https://archive.org/details/jb-putdmdpc/page/n207 ). Note que este livro foi escrito no Verão de 1973, embora só tivesse sido publicado, na versão conhecida, no começo de 1975. Não me recordo se para a publicação de 1975 introduzi algumas modificações no referido documento interno, mas, se o fiz, foram apenas de estilo. Aqui eu já considerava que o regime soviético e a China eram capitalismos de Estado e que a sua classe dominante era capitalista, embora distinta da burguesia tradicional, e considerava que esta mesma classe capitalista não-burguesa existia também nos capitalismos ocidentais. Estas teses desencadearam uma grande polémica não só no interior da direcção dos CCR, composta por cinco pessoas, sendo eu uma delas, mas no interior de toda a organização. A minha posição era muito minoritária e no meio dessa discussão, que estava a chegar ao ponto de ruptura, ocorreu o golpe militar de 25 de Abril de 1974, com a subsequente revolução social. Eu e mais dois camaradas, Rita Delgado e João Crisóstomo, deixámos então os CCR seguir o seu destino e fundámos o jornal Combate ( http://jornalcombate.blogspot.com/ ), virado exclusivamente para as lutas práticas dos trabalhadores ( https://www.marxists.org/portugues/tematica/jornais/combate/index.htm ). Eu referia-me então a essa classe como tecnocracia, mas no 3º vol. de Marx Crítico de Marx, publicado em 1977 ( https://archive.org/details/jb-mcm-l01vol03 ), usei já a terminologia gestores.


Assim, é interessante considerar que até àquela data toda a minha evolução se fez sem ter lido directamente nenhum dos autores que trataram especificamente da classe dos gestores, uma bibliografia que só vim a ler mais tarde, depois de ter sido convidado a leccionar no Brasil, em 1984. Para isso foi muito importante o convívio com o Maurício Tragtenberg e igualmente com o Bresser Pereira e com o Fernando Prestes Motta, que falavam então de tecno-burocracia, exactamente na acepção em que eu emprego o termo gestores.


17 de Fevereiro de 2019

João Bernardo

1 comentário:

  1. ERA UM MUNDO
    Antimemórias nada sentimentais de João Bernardo, sob a forma de uma coletânea de textos cuja leitura é indispensável - https://vosstanie.blogspot.com/

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.