Um percurso:
a classe dos gestores
No início de 1963 foi publicado o
primeiro número da revista Análise Social, que renovou a
sociologia em Portugal. O seu fundador, inspirador e director durante
muitos anos foi Adérito Sedas Nunes, que, no plano intelectual, teve
um papel muito importante na transição do fascismo para a
democracia capitalista. Analisei este papel no Labirintos
do Fascismo, 3ª versão. Pode procurar usando controle f ou
o índice de personagens no final do livro.
Comecei a minha actividade política
contra o fascismo no início do ano lectivo de 1961-1962, com quinze
anos de idade. Eu militava tanto no movimento estudantil como na
acção clandestina, na periferia do Partido Comunista. No início do
ano lectivo de 1963-1964 passei para a universidade e entrei então
para o Partido Comunista, mas já como militante. A Análise
Social aparecia-nos, a mim e a outros colegas, como um sopro
renovador no ambiente esclerosado da academia portuguesa no
salazarismo, e foi aí que pela primeira vez deparei com a noção de
uma tecnocracia modernizadora com interesses sociais próprios. A
raiz do que mais tarde eu definiria como classe dos gestores, foi aí
que a encontrei.
No final do ano lectivo de 1964-1965
fui expulso de todas as universidades portuguesas por um período de
oito anos, a mais longa expulsão decretada pelo fascismo português
durante os seus quarenta e oito anos de existência. Em 1965-1966 fui
preso três vezes, e pouco depois da minha última prisão decidi
abandonar o Partido Comunista. Em 1964 ocorrera uma cisão maoísta,
que levara à fundação conjunta do Comité Marxista-Leninista
Português (CMLP) e da Frente de Acção Popular (FAP). Estas duas
organizações foram completamente destruídas pela Pide, a polícia
política, no final de 1965. Quando saí do Partido Comunista, em
1966, encetei, junto com alguns camaradas, a reconstrução, a partir
do zero, de uma organização maoísta. Em Novembro de 1967 a Pide
destruiu praticamente tudo o que tínhamos criado, mas eu consegui,
junto com outros dois camaradas, passar à clandestinidade antes de
sermos presos. Na clandestinidade, um desses camaradas permaneceu
inactivo e o outro foi preso pouco depois, ainda em Novembro de 1967
ou no começo de Dezembro. Fiquei sozinho a reconstruir o que me era
possível. Durante esse período de clandestinidade escrevi um texto
bastante longo intitulado Portugal 1968: Um Ponto Morto?, onde
me lembro que usei a noção de uma tecnocracia com interesses
sociais próprios, que apreendera na leitura da Análise Social.
Esse texto foi então policopiado e distribuído clandestinamente. Eu
não tenho nenhum exemplar, e Miguel Cardina, o historiador que
melhor estudou a extrema-esquerda portuguesa durante esse período (
https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/15488/1/Tese%20doutoramento_Miguel%20Cardina.pdf
), diz que não conseguiu encontrar nenhum exemplar. Se ele não o
conseguiu, ninguém mais conseguirá. Aliás, para conhecer a minha
actuação política antes do 25 de Abril de 1974 pode ler o que o
Cardina escreveu a meu respeito nessa obra.
Em Junho de 1968, terminado o trabalho de reconstrução da organização maoísta, a que me era possível proceder naquelas condições, passei clandestinamente a fronteira e fui para Paris, onde vivi também clandestinamente, ou seja, com documentos de identificação falsos, até Abril de 1974. Em Outubro de 1969 rompi com a organização maoísta central, o CMLP ( https://archive.org/details/jb-cdt ). Mais exactamente, eu ia ser expulso e antecipei-me um dia, só para dizer que tinha sido eu a sair.
Na sequência da minha saída do CMLP
fundei, junto com outros camaradas, que na altura estavam todos em
Portugal, os Comités Comunistas Revolucionários (CCR) (
https://pt.wikipedia.org/wiki/Comit%C3%A9s_Comunistas_Revolucion%C3%A1rios_Marxistas-Leninistas
). Escrevi então um longo artigo, À Esquerda de Cunhal Todos os
Gatos São Pardos, publicado em números sucessivos da revista
teórica dos CCR, intitulada Viva o Comunismo! (
https://archive.org/search.php?query=Jo%C3%A3o%20Bernardo
). Álvaro Cunhal era o secretário-geral do Partido Comunista e o
artigo fazia uma crítica às concepções do Partido Comunista e às
concepções de uma variedade de organizações e grupos que,
entretanto, haviam surgido na área do maoísmo e do
marxismo-leninismo. Não reli esse artigo, e aliás devo dizer-lhe
que nunca releio os meus textos, como medida profiláctica para não
pôr travões à imaginação e manter a criatividade. Mas lembro-me
de que um dos eixos centrais da análise consistia na distinção
entre uma pequena-burguesia de raiz pré-capitalista, formada por
artesãos, pequenos comerciantes e gente desse género, e outro tipo
de pequena-burguesia, que se desenvolvia e crescia com o crescimento
do capitalismo, formada por profissões como os engenheiros e outros
tecnocratas. Nesta série de artigos eu dava um maior desenvolvimento
àquilo que esboçara no Portugal 1968: Um Ponto Morto? e que
apreendera na leitura da Análise Social.
Entretanto, cabe explicar o seguinte.
Após a minha ruptura com o CMLP, a imprensa do CMLP passou a
acusar-me sistematicamente de trotskismo. É claro que esta era uma
acusação habitual nos meios stalinistas, mas foi tão sistemática
que eu pensei: será que sou mesmo trotskista? Em Portugal não havia
então nenhuma organização trotskista, e aliás nunca houvera, mas
se eu fosse trotskista escusava de perder o meu tempo no meio
maoísta. Até essa altura eu lera três ou quatro livros de Trotsky,
e decidi então ler tudo o que me fosse possível, o que em Paris não
era difícil. Li os livros dele. E nessa época os trotskistas
americanos haviam recolhido e editado em vários volumes os artigos
que o Trotsky escrevera depois de ter saído da União Soviética.
Comprei estes volumes e estudei aquilo tudo atentamente, com três
resultados. O primeiro, foi que cheguei à conclusão de que eu não
era trotskista. O segundo resultado, é que passei a ter um
conhecimento detalhado da obra de Trotsky, que me tem servido até
hoje.
Mas houve ainda um terceiro resultado,
que interessa aqui especialmente. Depois de ter abandonado a União
Soviética, além dos seus ataques a Stalin e ao stalinismo, Trotsky
passou a conduzir sistematicamente uma luta política dupla, que é
muito mais visível nos artigos do que nos livros. Por um lado, ele
atacava aqueles a quem acusava de «centrismo», ou seja, que acusava
de oscilarem entre o stalinismo e as posições dele, Trotsky, e
pouco mais tarde da IV Internacional, a partir do momento em que foi
fundada. Estes «centristas» reuniam-se em torno do Bureau
Londres-Amesterdão e incluíam os socialistas noruegueses; o POUM
espanhol, com Joaquìn Maurìn e Andrès Nin; o grupo de Saint-Denis,
com Doriot, antes de se terem convertido no principal partido
fascista francês; os holandeses de Henk Sneevliet; Victor Serge e
outros. Ao mesmo tempo, Trotsky conduzia uma luta contra todos
aqueles que classificavam o regime soviético, não como um
socialismo degenerado, mas como um verdadeiro sistema de exploração
de classe, e que consideravam a burocracia soviética, não como uma
casta privilegiada, mas como uma verdadeira classe exploradora. Em
termos muito gerais, estes militantes à esquerda de Trotsky
dividiam-se em duas grandes correntes. Uns consideravam o regime
soviético como um capitalismo de Estado e consideravam a burocracia
ou como uma burguesia de Estado ou como uma classe capitalista não
burguesa. Outros consideravam o regime soviético como um sistema
económico pós-capitalista e a burocracia como o protótipo de uma
classe dominante pós-capitalista. Tratei em parte esta questão no
Labirintos
do Fascismo, 3ª versão, nas págs. 467 e segs.
Assim, a leitura das polémicas de
Trotsky abriu-me os olhos para toda uma gama de autores que, na
extrema-esquerda, consideravam a existência de uma classe
exploradora que não era a burguesia tradicional. Quero aqui chamar a
atenção para o facto de eu ter conhecido esses autores não pelas
obras deles, que em boa parte eram dificílimas de encontrar, e ainda
hoje o são, mas pelas acusações de Trotsky. Esta foi uma
contribuição decisiva para eu desenvolver as noções que começara
a esboçar no Portugal 1968: Um Ponto Morto? e no À
Esquerda de Cunhal Todos os Gatos São Pardos.
Entretanto, a
Revolução Cultural chinesa perdera o carácter de base e a
espontaneidade que a caracterizara inicialmente e fora completamente
militarizada, uma evolução que nos deixava, nos CCR, cada vez mais
perplexos. A visita de Nixon à China, em Fevereiro de 1972, foi a
proverbial gota de água que fez transbordar o copo. Eu redigi então
um documento interno que fiz circular nos CCR, a cuja direcção
pertencia, e que usei mais tarde como capítulo 25 do Para uma
Teoria do Modo de Produção Comunista, págs. 231 e segs. (
https://archive.org/details/jb-putdmdpc/page/n207
). Note que este livro foi escrito no Verão de 1973, embora só
tivesse sido publicado, na versão conhecida, no começo de 1975. Não
me recordo se para a publicação de 1975 introduzi algumas
modificações no referido documento interno, mas, se o fiz, foram
apenas de estilo. Aqui eu já considerava que o regime soviético e a
China eram capitalismos de Estado e que a sua classe dominante era
capitalista, embora distinta da burguesia tradicional, e considerava
que esta mesma classe capitalista não-burguesa existia também nos
capitalismos ocidentais. Estas teses desencadearam uma grande
polémica não só no interior da direcção dos CCR, composta por
cinco pessoas, sendo eu uma delas, mas no interior de toda a
organização. A minha posição era muito minoritária e no meio
dessa discussão, que estava a chegar ao ponto de ruptura, ocorreu o
golpe militar de 25 de Abril de 1974, com a subsequente revolução
social. Eu e mais dois camaradas, Rita Delgado e João Crisóstomo,
deixámos então os CCR seguir o seu destino e fundámos o jornal
Combate ( http://jornalcombate.blogspot.com/
), virado exclusivamente para as lutas práticas dos trabalhadores (
https://www.marxists.org/portugues/tematica/jornais/combate/index.htm
). Eu referia-me então a essa classe como tecnocracia, mas no
3º vol. de Marx Crítico de Marx, publicado em 1977 (
https://archive.org/details/jb-mcm-l01vol03
), usei já a terminologia gestores.
Assim, é interessante considerar que
até àquela data toda a minha evolução se fez sem ter lido
directamente nenhum dos autores que trataram especificamente da
classe dos gestores, uma bibliografia que só vim a ler mais tarde,
depois de ter sido convidado a leccionar no Brasil, em 1984. Para
isso foi muito importante o convívio com o Maurício Tragtenberg e
igualmente com o Bresser Pereira e com o Fernando Prestes Motta, que
falavam então de tecno-burocracia, exactamente na acepção
em que eu emprego o termo gestores.
17 de Fevereiro de 2019
João Bernardo
ERA UM MUNDO
ResponderEliminarAntimemórias nada sentimentais de João Bernardo, sob a forma de uma coletânea de textos cuja leitura é indispensável - https://vosstanie.blogspot.com/